Agora sinto vontade de me apoderar do teu canhão, desmontá-lo peça a peça, refazê-lo e disparar não contra o teu texto não na intenção de o liquidar mas para exterminar dele a parte que me agride. Afinal assim identificando-me sempre eu, até posso ajudar-te à busca de uma identidade em que sejas tu quando eu te olho, em vez de seres o outro.
Para fazer isto eu tenho que transformar e transformo-me. Assim na minha oratura para além das estórias antigas na memória do tempo eu vou passar a incluir-te. Vou inventar novas estórias. Por exemplo o espantalho silencioso que coloco na lavra para os pássaros não me comerem a massambala passa a ser o outro que não fazia parte do texto. Também vou substituir a surucucu cobra maldita. Surucucu passa a ser o outro. E a cobra no meu texto inventado agora passa a ser bela e pacífica se morder o outro com o seu veneno mortal.
E agora o meu texto se ele trouxe a escrita? O meu texto tem que se manter assim oraturizado e oraturizante. Se eu perco a cosmicidade do rito perco a luta. Ah! Não tinha reparado. Afinal isto é uma luta. E eu não posso retirar do meu texto a arma principal. A identidade. Se o fizer deixo de ser eu e fico outro, aliás como o outro quer. Então vou preservar o meu texto, engrossá-lo mais ainda de cantos guerreiros. Mas a escrita? A escrita. Finalmente apodero-me dela. E agora? Vou passar o meu texto oral para a escrita? Não. É que a partir do movimento em que eu o transferir para o espaço da folha branca, ele quase morre.
Não tem árvores. Não tem ritual. Não tem as crianças sentadas segundo o quadro comunitário estabelecido.m som. Não tem dança. Não tem braços. Não tem olhos. Não tem bocas. O texto são bocas negras na escrita quase redundam num mutismo sobre a folha branca. O texto oral tem vezes que só pode ser falado por alguns de nós. E há palavras que só alguns de nós podem ouvir. No texto escrito posso liquidar este código aglutinador. Outra arma secreta para combater o outro e impedir que ele me descodifique para depois me destruir.
Como escrever a história, o poema, o provérbio sobre a folha branca? Saltando pura e simplesmente da fala para a escrita e submetendo-me ao rigor do código que a escrita já comporta? Isso não. No texto oral já disse: não toco e não o deixo minar pela escrita, arma que eu conquistei ao outro. Não posso matar o meu texto com a arma do outro. Vou é minar a arma do outro com todos os elementos possíveis do meu texto. Invento outro texto. Interfiro, desescrevo para que conquiste a partir do instrumento de escrita um texto escrito meu, da minha identidade. Os personagens do meu texto têm de se movimentar como no outro texto inicial. Têm de cantar. Dançar. Em suma temos de ser nós.‘Nós mesmos’. Assim reforço a identidade com a literatura.
Só que agora porque o meu espaço e tempo foi agredido, para defender por vezes dessituo do espaço e tempo o tempo mais total. O mundo não sou eu só. O mundo somos nós e os outros. E quando a minha literatura transborda a minha identidade é arma de luta e deve ser ação de interferir no mundo total para que se conquiste então o mundo universal.
Escrever então é viver.
Escrever assim é lutar.
Literatura e identidade. Princípio e fim. Transformador. Dinâmico. Nunca estático para que além da defesa de mim me reconheça sempre que sou eu a partir de nós também para a desalienação do outro até que um dia e virá “os portos do mundo sejam portos de todo o mundo”.
Até lá não se espantem. É quase natural que eu escreva também ódio por amor ao amor.
Manuel Rui Alves Monteiro (Huambo, 1941) é um escritor angolano. Licenciou-se em Direito pela Universidade de Coimbra onde foi também membro fundador do Centro de Estudos Jurídicos. Poeta, ficcionista, ensaísta e cronista, entre as suas obras possui textos traduzidos para diversas línguas, entre elas, tcheco, servo-croata, romeno, russo, árabe e hebraico. Tem colaboração em diversos jornais e revistas lusófonos, entre os quais, o jornal O Público e o Jornal de Letras. Foi Ministro da Comunicação Social do Governo de transição que antecedeu a independência de Angola, Diretor do Departamento de Orientação Revolucionária e do Departamento de Relações Exteriores do M.P.L.A. É autor da letra do primeiro Hino Nacional de Angola e de outros hinos como o “Hino da Alfabetização, “Hino da Agricultura” e versão angolana da “Internacional”. Também é autor de canções com parcerias como Rui Mingas, André Mingas, Paulo de Carvalho e Carlos do Carmo (Portugal) e Martinho da Vila (Brasil), entre outros. Da sua vastíssima obra destacam-se os últimos títulos: «O Manequim e o Piano» (2005) e «Estórias de Conversa» (2006) «Quem me dera ser onda» (1989).
* Manuel Rui: Eu e o outro – o invasor ou em poucas três linhas uma maneira de pensar o texto. Comunicação apresentada no Encontro Perfil da Literatura Negra. São Paulo, Brasil, 23/05/1985.
Nenhum comentário:
Postar um comentário